terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Quem Eles Dizem Que Eu Sou? Os Historiadores e Jesus Parte III - Critérios e Julgamentos (Martin Goodman, JP Meier, Jona Lendering, André Chevitaresi)

Continuando a Série "Quem ele dizem que eu Sou":

Martin Goodman


Martin D Goodman é professor de estudos judaicos na Faculty of Oriental Studies e fellow do Wolfson College da Universidade de Oxford, e sua pesquisas concentram-se nos aspectos sociais, religiosos e politicos dos judeus no Império Romano, e tem publicado extensamente sobre judaismo do segundo templo e seus grupos (inclusive o então nascente cristianismo), Josefo, os judeus no mundo greco-romano, e da historia do Imperio Romano.

Em seu livro "The Roman World 44 BC-AD 180" (1997), Goodman busca uma perspectiva integrada, holística, do desenvolvimento do Império Romano, de Júlio Cesar a Marco Aurélio, entre os tópicos abordados, ele analisou as origens do cristianismo.


Primeiramente, o Professor Goodman aborda as fontes do cristianismo primitivo e suas peculiaridades, em vista disso, como analisa-las.
"the early history of christianity has to be puzzled out by examination and elucidation of inconsistencies within the Christian literature itself. The preservation of so much literature makes such an investigation possible on many topics - thus, for instance the different accounts of Jesus' carreer and teaching in the four canonical Gospels can profitably be compared - but it is not easy, and theological preoccupations of most modern scholars who study early Christianity so predispose them to particular interpretations of the evidence that the subject has achieved much less scholarly consensus than any other in the history of Early Empire" (tradução) "a história do cristianismo primitivo e como um quebra-cabeças a ser montado a partir do exame e elucidação da literatura cristã, em que pese suas incosistências. A preservação de tão volumosa literatura faz essa investigação possível sobre muitos temas - assim, por exemplo, os diferentes relatos dos feitos e ensinos de Jesus nos quatro evangelhos canônicos podem ser proveitosamente analisados - mas não é fácil, e as preocupações teológicas da maioria dos acadêmicos atuais que estudam o cristianismo primitivo os predispôem a interpretações particulares das evidências, de forma que o assunto alcançou um nivel de consenso acadêmico inferior ao de qualquer outro da história do Império Romano [dos Julio-Claudianos, Flavianos e Antoninos (45 AC a 180 DC).[1]


Goodman passa analisar então a vida de Jesus, e suas fontes, fazendo algumas considerações sobre as dificuldades enfrentadas, como elas devem ser analisadas sempre no contexto do Judaísmo do I Século, como abordar sob o aspecto histórico suas concordâncias e diferenças, e o fato de terem sido escritas na forma de biografia com forte interesse teológico.


"Most contentious of all is the reconstruction of the life and teaching of Jesus himself, which need to be placed firmly within the context of first century Judaism in the land of Israel. The accounts of Jesus' carreer in the four canonical gospels included in the New Testament agree on the main events of his life, and Luke and Matthew agree so closely on some of Jesus' teaching that a common (oral) source ("Q") is often posited, but the Gospels differ in detail and in some of the teaching ascribed to Jesus; the apocryphal gospels differ even more, which is probably one reason for their exclusion from the canon by Christians of the second century. The problem arose because the use of these biographical accounts as the main vehicles of theological ideas from the first generation of the Church, so that religious significance was from early on read into each of Jesus' recorded actions and statements.
(tradução) O tópico mais controverso de todos é a reconstrução da vida eo ensinamento do próprio Jesus, que precisam ser colocados firmemente dentro do contexto do judaísmo do primeiro século na terra de Israel. Os relatos da carreira de Jesus nos quatro evangelhos canônicos incluídos no do Novo Testamento concordam no que se refere aos principais acontecimentos de sua vida, e Lucas e Mateus concordam tão bem em alguns dos ensinamentos de Jesus que uma fonte (oral) comum ("Q") é muitas vezes proposta, mas os Evangelhos diferem em detalhes e, em alguns dos ensinamentos atribuídos a Jesus; os evangelhos apócrifos diferem ainda mais, que é provavelmente uma das razões para sua exclusão do cânon pelos cristãos do segundo século. O problema surgiu pelo uso desses relatos biográficos como os principais veículos de idéias teológicas da primeira geração da Igreja, de modo que significado religioso foi desde cedo impresso em cada uma das ações e declarações que relatam sobre Jesus. [1]

Goodman passa então as considerações metológicas na analise das fontes de Jesus.

A minimalist solution for such conflicting testimony is to accept as true only those elements of the tradition which conflict with later Christian doctrine, on the grounds that such material cannot owe its inclusion to latter invention, but even this procedure is hardly secure: too much of the history of the first generation of the christians after the ressurection is itself obscure to state for certain that any particular teaching was not found among them, and some continuity between Jesus' teaching and his followers is inherently plausible because they took his name to define themselves" (tradução) Uma solução minimalista para este testemunho conflitante é aceitar como verdadeiros apenas os elementos da tradição que conflitam com a doutrina cristã posterior, com o fundamento de que tal material não poderiam ter sido inventado pela igreja, mas mesmo este procedimento não é garantido: muito da história da primeira geração dos cristãos depois da ressurreição é obscuro para afirmar com certeza que qualquer ensino particular não foi encontrado entre eles, e alguma continuidade entre o ensino de Jesus e seus seguidores é inerentemente plausível uma vez que definiam a identidade de seu grupo pelo seu nome" [1]

Ou seja, os evangelhos foram produzidos pelos cristãos para trazer pessoas a fé, e edificar e confortar aqueles que já estavam nela. A vida de Jesus foi narrada para atingir esses objetivos. Desta forma, houve claramente um víes na elaboração desses escritos, o que poderia levar os autores a criarem ou modificarem ditos e feitos de Jesus para atender seus objetivos. Goodman observa então que uma abordagem minimalista que o pesquisador pode adotar é de aceitar como verdadeiros apenas os elementos que conflitam ou não se ajustam ao viés dos cristãos primitivos. Por um princípio fundamental da crítica textual, elementos no texto, que vão contra a sua tendência global sugerem que alguma informação autêntica sobreviveu ao processo editorial, esse princípio é a base dos critérios da diferença da igreja primitiva e do contrangimento, utilizados na pesquisa do Jesus Histórico. Como já escrevemos aqui (citando Gerd Theissen e Dagmar Winter) "em geral, fontes históricas não são compostas e preservadas por autores desisteressados ou neutros, mas são elaboradas com propósitos e motivos, assim, os elementos que não corroboram esses interesses e motivos são particularmente dignos de confiança". Se elementos que não atendem ou mesmo conflitam com interesses e motivos dos cristão primitivos são mantidos na tradição, podemos inferir que a principal razão e que fossem suficientemente conhecidos para serem negados ou omitidos, e utilizados, por exemplo, por adversários dos cristãos, e dessa forma, tinham que ser explicados de alguma forma, mesmo que não fosse convincente. Como também já observamos (citando o Professor Murray G Murphy, da Universidade da Pensilvânia) : "Em outras palavras, se uma narrativa relata um fato que vai contra a tendência do autor, haverá maiores razões para acreditar nele, uma vez que o viés do autor nos levaria a esperar sua omissão, a menos que sua ocorrência fosse tão bem conhecida que não pudesse ser excluída". Murphy esta utilizando justamente o exemplo do batismo de Jesus por João, um caso quase sempre citado de fato autenticado pelo criterio do constrangimento, como um belo exemplo do "papel dos fatos nos relatos históricos", "uma vez que o viés de todos esses escritores [os evangelistas] vai contra a inclusão do batismo, o fato de três deles o mencionarem, dois deles contra a vontade, depõe em favor da autenticidade do acontecimento em Marcos" [2]




Goodman, em seu livro "Rome and Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations", utiliza um principio semelhante para avaliar a obra de Flávio Josefo




"To accept Josephus' often tendentious evaluation of the motives and characters of the Jews and Romans whose actions constitute his narrative would be rash, but to accept the details of his narrative, particularly when they contradict his own explanations of events, and so survive in the narrative only because they happened, is reasonable.(tradução) Aceitar as avaliaçãoes frequentemente tendenciosas de Josefo sobre os motivos e caráter dos judeus e romanos cujas ações são descritas em sua narrativa seria imprudente, mas aceitar os detalhes de sua narrativa, particularmente quando eles contradizem sua própria explicação dos eventos, e assim foram incorporados a seu relato simplesmente porque realmente aconteceram, é razoavel [3]

Por exemplo, o autor do Evangelho de Mateus, geralmente datado de 80-100 DC, apresenta Jesus comissionando seus discípulos (capítulo 10) "as ovelhas perdidas da casa de Israel", os orienta a não irem as cidades dos samaratinos e dos gentios, e promete que, diante de obstáculos e perseguições, em que fugiriam de cidade em cidade, "em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do homem" (Mt 10:23). Dificilmente este dito pode ter sido inventado pelo autor do evangelho; aquela altura, na segunda ou terceira geração de cristãos, a nova fé já tinha percorrido não só as cidades de Israel, quanto as da Síria, Asia Menor, Grécia e Roma, e a vinda do Reino de Deus não havia acontecido; o próprio Mateus afirma que Jesus ordenou que seus discipulos pregassem a todas as nações, (cf Mt 28:19). O mais provável, então, é que esse dito atribuido a Jesus já circulasse a muito tempo entre as comunidades cristãs e que sua inclusão nesse contexto se devesse a uma tentativa de explica-lo.


Mesmo assim, Goodman observa que essa abordagem minimalista apresenta duas vulnerabilidades intrinsecas, que limitam nossa segurança quanto aos seus resultados. A primeira é que existem muitas coisas que não sabemos em relação aos cristãos do século I, então podem haver ensinos e feitos relatados nos evangelhos que atendem expectativas deses cristãos desconhecidas por nós, e assim podemos aceitar precipitadamente como dissimilares ou constrangedores elementos da tradição que não eram vistos desta forma pela primeira e segunda geração de cristãos. Pelo extremo oposto, o fato é que se considerarmos como fatos apenas aquilo que diferencia Jesus de seus seguidores, ou os constrange, estamos excluindo justamente os elementos que fizeram com que ele atraisse esses seguidores.


No que se refere ao primeiro problema, se há muitas coisas que não sabemos sobre o cristianismo do 1º século e início do 2°, o número de fontes ainda é significativo (a maior parte do Novo Testamento, e possivelmente o Evangelho de Tomé, o Didaque, as cartas de Barnabé e 1ª Clemente) de forma que temos um volume de informações significativo. E, de qualquer forma, sempre haverá lacunas em nosso conhecimento, por mais que ele aumente, e isso vale não só para o cristianismo primitivo, mas para qualquer outra área do conhecimento. Sempre haverá coisas que desconhecemos. Isso não impede de prosseguir com base no conhecimento presente, e revisar as conclusões a medida que ele aumenta. Quanto ao segundo problema, o princípio da diferença ou constrangimento nos permite isolar alguns fatos prováveis associados a Jesus, mas não deve ser tomado isoladamente como única ferramenta para avaliar os evangelhos. Ele deve ser complementado com outros críterios e metodos. Ainda, como observa Goodman, o efeito geral de aceitar como verdadeiros apenas os elementos da tradição que conflitam com a doutrina cristã posterior é fundamentalmente minimalista. Em outras palavras, são testes severos.


Goodman, utilizando as premissas acima, apresenta seu próprio sumário do Jesus Histórico



"Jesus was a jew from Galilee who during the period when Pontius Pilate was governor of Judea gathered a considerable following of Jews, first in his home region, then in Jerusalem. His disciples seem to have been peasant Galileans, but his activites aroused sufficient interest in Jerusalem to attract opposition from the ruling elite in Jerusalem, who then handed him over to Pilate for execution like a common criminal. After his death, his followers believed that he was phisycally resurrected for a brief period before his ascent to heaven, and that he was the Messiah, a belief that he probably encouraged while he was alive. Specif teachings are more difficult to attribute to Jesus with any certainty. Those doctrines ascribed to him in the Gospels which cannot be paralleled in contemporary Judaism (and there are few) all coincide too closely with later Christian teachings for certainty that they are not a reflection of such later communities; but his unparalleled emphasis on the Kingdom of God (either in the present or the near future) reflect a distinctive intensity in his call to individual to repent " (tradução)Jesus era um judeu da Galiléia que, durante o período em que Pôncio Pilatos era governador da Judéia, reuniu um considerável número de seguidores, primeiro em sua região de origem, em seguida, em Jerusalém. Seus discípulos parecem ter sido camponeses galileus, mas suas atividades despertaram interesse suficiente em Jerusalém, para atrair a oposição da elite governante, que em seguida entregou-o a Pilatos para execução como um criminoso comum. Após sua morte, seus seguidores acreditavam que ele era ressuscitou fisicamente por um breve período antes de sua ascensão ao céu, e que ele era o Messias, uma crença de que ele provavelmente encorajou enquanto estava vivo. Ensinamentos específicos são mais difíceis de atribuir a Jesus com segurança. As doutrinas atribuídas a ele nos Evangelhos, que não encontram paralelo no judaísmo contemporâneo (e são poucas) coincidem todas com os ensinamentos cristãos posteriores, para que possamos afastar totalmente a possibilidade que não são um reflexo de tais comunidades posteriores, no entanto, sua ênfase sem precedentes no Reino de Deus (ou no presente ou no futuro próximo) refletem uma intensidade particular em seu apelo aos indivíduos para se arrependerem "[4]

John P Meier



Jonh P Meier é Professor de Novo Testamento e titular da William K. Warren Foundation Chair do Departamento de Teologia da Universidade de Notre-Dame, e padre católico. Sua obra acadêmica inclui numerosos artigos publicados e a monumental obra "Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico", iniciada em 1991, ainda em curso, já em seu quarto volume.


Meier, ele mesmo um sacerdote católico, inicia seu livro reconhecendo as dificuldades religiosas e ideológicas na pesquisa do Jesus Histórico. Ele explica sua proposta de trabalho utilizando a ilustração de um "Conclave sem Papa". Quatro historiadores - objetivos, honestos e com profundo conhecimento dos movimentos religiosos da Palestina do 1° Século - um católico, outro protestante, outro judeu, e um outro agnóstico, seriam trancados nos porões da Biblioteca da Harvard Divinity School, com objetivo de escrever um documento consensual sobre quem Jesus de Nazaré era e o que pretendia, sendo o principal requisito é que seriam utilizados unicamente fontes e argumentos históricos [5]. Com isso Meier se compromete a uma análise objetiva e crítica, utilizando a metodologia histórica disponivel, sobre as fontes de Jesus de Nazaré, visando reconstruir o "Jesus Histórico". Ao longo dos anos, o trabalho de Meier tem ganho aceitação e respeito de estudiosos de diferentes visões e concepções religiosas e filosoficas; entre os endossos de seus livros temos estudiosos judeus como o Rabino Prof. Burton L Visotsky (Jewish Theological Seminary), Prof. Shaye J D Cohen (Universidade de Harvard), e o Professor Louis Feldman (Yeshiva University); bem como os católicos Joseph Fitzmeier (Catholic University of America) e Daniel J Harrington (Boston College School of Theology), e protestantes como Paul J. Achtemeier (Union Presbiteryan Seminary) [4].


Em seu primeiro livro, Meier apresenta seu método de trabalho, relacionado cinco critérios primários de historicidade: o critério do constrangimento, o critério da discontinuidade ou diferença, o critério da múltipla atestação, o critério da rejeição da execução de Jesus (uma aplicação do critério do constrangimento voltada especificamente a crucificação de Jesus, o mais bem atestado fato de sua vida) e o critério da coerência (os elementos conexos aos fatos já autenticados por outros critérios primários são provavelmente históricos). Meier considera outros quatro critérios secundários: o de traços de aramaico, ambientação no contexto palestino, vividez de narração, e tendências de desenvolvimento da tradição de sinótica. Por conveniência vamos considerar aqui o critério do constangimento (em conexão com o da rejeição a execução), e o da múltipla atestação, ambos em conjunto com o critério da coerência.


Meier escreve:
"Considerando-se a natureza da história antiga em geral e a dos evangelhos em particular, os critérios de historicidade normalmente levarão a julgamentos que são apenas mais ou menos prováveis; raramente se chega a uma certeza. Com efeito, já que na Busca do Jesus Histórico quase tudo é possível, para o realmente provável, examinar as várias probabilidades e decidir qual das alternativas é a mais provável. Via de regra, os critérios não se propõem a mais que isso" [5]


O ponto colocado por Meier é importantíssimo. Os critérios de historicidade não são mágicos. Eles são expressões de principios de análise histórica, com algumas adaptações para a realidade específica do cristianismo primitivo. Na verdade aplicamos raciocício análogo quotidianamente para avaliar, julgar e decidir entre várias alternativas possíveis. Existem critérios para um Banco conceder empréstimos a seus clientes (como renda, histórico de relacionamento, estabilidade e variabilidade da renda, perfil do cliente, nível de endividamento), para investir dinheiro, para contratar funcionários, escolher um(a) namorada (o), apostar no "bolão" do campeonato brasileiro com seus amigos ... Em cada uma dessas atividades utilizamos critérios para avaliar e decidir entre alternativas possíveis, que possuem base objetiva na experiência comum, mas permitem, em alguns casos mais outros menos, elementos subjetivos. Tais critérios não são infalíveis ou totalmente seguros, por exemplo, os bancos fazem empréstimos para clientes que não conseguem pagar suas dívidas, investidores perdem dinheiro em aplicações consideradas seguras, um bom partido pode se transformar em um "traste e cafajeste" ou uma "dona encrenca", e o Mazembe pode ganhar do Campeão da Libertadores da América e o Barcelona perder para o Getafe. No entanto, na grande maioria dos casos, os acertos superam os erros, e a maioria dos clientes pagam as suas dívidas, os investidores recebem algum retorno por sua poupança, e os times grandes e mais fortes ganharão a maior parte dos jogos contra os menores e mais fracos tecnicamente. A lógica dos critérios de historicidade é parecida, os estudiosos podem errar em seus julgamentos, mas vão acertar também, e mais frequentemente. No entanto, em todos esses casos a precisão pode ser refinada e o processo sofisticado com modificação e substituição dos critérios existentes.



Meier descreve o critério do constrangimento:
"O critério do "constrangimento" (segundo Schillebeckx) ou da "contradição" (segundo Meyer) enfoca os atos ou palavras de Jesus que poderiam ter constrangido ou criado dificuldades para a Igreja Primitiva. O ponto essecial desse critério é que a Igreja em seus primórdios dificilmente teria se afastado de sua linha para criar material que pudesse constranger seu criadores e enfraquecer sua posição nas discussões com adversários. Ao contrário o material constrangedor seria suprimido ou atenuado nos estágios posteriores da tradição do evangelho; muitas vezes, a supressão ou a atenuação progressivas podem ser detectados ao longo dos quatro evangelhos"[6 ]


Um dos exemplos clássicos de aplicação desse critério é o batismo de Jesus por João Batista. Meier continua:

"Um ótimo exemplo é o batismo de Jesus de Jesus, supostamente superior e sem pecado, por João Batista, considerado seu inferior, e que proclamava "um batismo de arrependimento para remissão de pecados". Misterioso, lacônico e severo, Marcos relata o evento sem qualquer explicação teológica para o fato de o superior e virtuoso se submeter a batismo destinado a pecadores (Marcos 1:4-11). Mateus introduz um diálogo entre Batista e Jesus antes do batismo, o primeiro claramente confessa-se indigno de batismo, o primeiro claramente confessa-se indigno de batizar seu superior e só cede quando Jesus assim o ordena, para que se cumpra o plano de Salvação de Deus (Mateus 3:13-17, uma passagem marcada pela linguagem típica do evangelista). Lucas encontra uma solução surpreendente para o problema, ao falar da prisão de João batista por Herodes antes de narrar o batismo de Jesus; essa versão sequer menciona quem batizou Jesus (Lucas 3:19-22). João o inflexivel quarto evangelista, envolvida numa luta com os discípulos contemporâneos de Batista, que se recusaram a reconhecer Jesus como Messias, adota o expediente radical de suprimir inteiramente o evento do batismo de Jesus, que simplesmente não existe em seu evangelho. Tomamos conhecimento do testemunho do Pai e da descida do Espírito Santo sobre Jesus, porém não nos é dado saber qunado ocorre a Teofania (João 1:29-34). É bem possível que a Igreja de então, vendo-se "atrapalhada" com um acontecimento considerado cada vez mais embaraçoso, tivesse procurado atenua-lo de varias formas, até que o João evangelista finalmente o suprimiu de seu evenagelho. É bastante improvável que a Igreja tivesse se afastado de seu caminho para criar a "causa" de seu próprio constrangimento [6]


Como já vimos acima, em seu trabalho de historiografia, o Professor Murphy utiliza o batismo de João como exemplo do papel dos fatos nos relatos históricos. Uma vez que os potenciais leitores do evangelho, cristãos ou não, na palestina e imediações sabiam que Jesus tinha sido batizado por João, e que era um fato conhecido que João batizava para remissão de pecados, e para eles Jesus não tinha pecado, os evangelistas não podiam se furtar de mencionar, e tentar explicar, esse fato perturbador. Nesse ponto, a análise do Padre e Professor Meier concorda perfeitamente com a do historiador ateu Michael Grant, Professor das Universidades de Edinburgo, Cartum e Belfast.

"But the forgiveness of Jesus' own sins, when he was baptized by John, has set the theologians of subsequent centuries a conundrum. For how could Jesus have been baptized for the forgiveness of his own sins when, according to the Christology which developed after his death, he was divine and therefore sinless?The embarrassment caused by this dilemma is enough to refute modern denials that the Baptist ever baptized Jesus at all. For, once again, the evangelists would have been only too glad to omit this perplexing event; but they could not.
(tradução) Mas o perdão dos pecados do próprio Jesus, quando ele foi batizado por João, gerou um dilema para os teólogos dos séculos subsequentes. Pois como poderia Jesus ter sido batizado para o perdão dos seus próprios pecados, quando, de acordo com a cristologia que se desenvolveu depois de sua morte, ele era divino e, portanto, sem pecado? O embaraço causado por este dilema é suficiente para refutar tentativas modernas de negar que João Batista tenha batizado Jesus. Mais uma vez, os evangelistas gostariam muito de omitir este evento desconcertante, mas eles não podiam [7 ]

De fato, o Professor Alan Segal,do Barnard College (Universidade de Columbia), resume alguns dos fatos passíveis de autenticação pelo critério do constrangimento:
For all the rigor of the standard it sets, the criterion demonstrates that Jesus existed. Here are some facts in the Gospels that embarrassed the early church: Jesus was baptized by John (a great theological problem). He preached the end of the world (which did not come). He opposed the Temple in some way (and this opposition led directly to his death). He was crucified (a disreputable way to die). The inscription on the cross was "Jesus of Nazareth, King of the Jews" (the church never preached this title for Jesus and shortly lost interest in converting Jews). No one actually saw him arise (though evidently his disciples almost immediately felt that he had). Ironically, it's the embarrassing nature of these facts that assures us of their authenticity. (tradução) "Pelo grande rigor com que foi definido, o critério [do embaraçamento] demonstra que Jesus existiu. Aqui estão alguns fatos nos evangelhos que a igreja foram embaraçosos para a Igreja Primitiva: Jesus foi batizado por João (um grande problema teológico). Ele pregou o fim do mundo (que não veio). Ele se opôs ao Templo de alguma forma (e esta oposição o levou diretamente para a morte). Ele foi crucificado (uma maneira desonrosa de morrer). A inscrição na cruz "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus" (a Igreja nunca pregou este título para Jesus e logo perdeu o interesse em converter judeus). Ninguém, de fato, viu quando ele ressuscitou (embora, evidentemente, seus discípulos, quase que imediatamente perceberam que ele estava vivo). Ironicamente, é a natureza embaraçosa desses fatos que nos garante que são autenticos .[8]

Outro dos critérios primários para Meier é o da Multipla Atestação ou Confirmação:
"O critério da múltipla confirmação (ou "corte transversal") dirige seu foco sobre as palavras de Jesus que são atestadas em mais de uma fonte literária independente (por exemplo: Marcos, Q, Paulo, João) e/ou em mais de um gênero ou forma literária (por exemplo: parábolas, historias de debates, história de milagres, profecia, aforismo). A força desse critério aumenta quando um determinado motivo ou tema é encontrado tanto em diferentes fontes literárias quanto em diferentes formas literárias. [9]

E dá um exemplo clássico de fato autenticado por esse critério:
''Uma das razões pelas quais os críticos afirmam sem vacilar que Jesus de alguma forma realmente falou no Reino de Deus (ou Reino dos Céus) é que a frase aparece em Marcos, em Q, na tradição especial de Mateus, na tradição especial de Lucas e João, com ecos em Paulo, apesar do "Reino de Deus" não ser a forma preferida de expressão desse último. Ao mesmo tempo a frase é encontrada em diversos gêneros literários (beatitudes, preces, aforismos, história de milagres). Dada a grande quantidade de testemunhos em diferentes fontes e gêneros, vindo principalmente da primeira geração de cristãos, fica bastante díficil alegar que tal material é apenas uma criação da Igreja [9]

Meier cita também o trabalho do Professor Harvey K McArthur, que sumarizou vários elementos da tradição evangélica autenticados por esse critério:
"McArthur (The burden of proof, 118) afirma que os seguintes motivos são testemunhados por todas as quatro correntes de tradição sinótica (ou seja, Marcos, Q, M e L): A proclamação do Reino de Deus por Jesus, a presença de discípulos a seu redor, ligação com João Batista, uso de parábolas, preocupação com os proscritos, em especial coletores de impostos e pecadores, uma ética radical, ênfase sobre o mandamento do amor, o apelo para que os discipulos praticarem o perdão, choque com seus contemporâneos quanto a observância do sábado, palavras sobre o Filho do Homem e o vocábulo hebraico amém para introduzir as palavras de Jesus [ 10]

Jona Lendering

Professor Jona Lendering é um historiador holandês e um dos fundadores da Livius Onderwijs, uma associação de professores voltados para a historia antiga, sediada em Amsterdã, que promove cursos e palestras sobre a Antiguidade Clássica. Lendering se graduou nas Universidades de Leiden e Livre de Amsterdã, e nesta última lecionou Teoria da História e História Antiga por vários anos. Professor Lendering é também o mantenedor do site Livius, que eu recomendo como um dos mais completo do assunto disponíveis na Web, uma excelente fonte sobre a Antiquidade, e uma verdadeira enciclopedia online sobre pessoas, lugares e conceitos das principais civilizações da Antiguidade como greco-romana, persa, judaica, egípcia entre outras.

Em vários artigos, Lendering abordou o fenômeno do messianismo entre os judeus da Antiguidade, bem como os vários pretendentes messiânicos ao longo do período. Lendering analisa então Jesus de Nazaré, bem como outros pretendentes messiânicos do período como Judas Galileu, Atronges, Simão de Peréia, Teudas, e o Profeta Egípcio.

Ao abordar Jesus de Nazaré, e as fontes evangélicas, Lendering observa:
"To solve this problem, we must find out which elements in the gospels are early Christian elaborations and which elements are historically accurate. The second problem is therefore how we separate the authentic from the inauthentic. As we will see below, there are very strong indications that Jesus was considered the Messiah before he died. The third and most important question is in what sense he was called the Messiah - as a military leader? as a Moses-like teacher?
Scholars usually solve the second question by invoking 'criteria of authenticity', such as embarrassment (some things are too embarrassing for Christians to be invented) and multiple attestation (when independent sources tell the same, it is likely to be authentic). Using criteria like these, we may conclude that many stories about Jesus are late fabrications."
(tradução) Para resolver este problema, temos de descobrir quais os elementos nos evangelhos são elaborações dos primeiros cristãos e quais elementos são historicamente exatos. O segundo problema é, portanto, como nós separamos o autêntico do inautêntico. Como veremos abaixo, há indícios muito fortes de que Jesus era considerado o Messias antes de morrer. A terceira questão e mais importante é em que sentido ele foi chamado o Messias - como um líder militar? Um mestre como Moisés ?
Estudiosos costumam resolver a segunda questão, invocando "critérios de autenticidade, tais como constrangimento (algumas coisas são muito embaraçosas para os cristãos para terem sido inventadas) e atestação múltipla (quando fontes independentes dizem o mesmo, é provável que seja autêntica). Usando critérios como estes, podemos concluir que muitas histórias sobre Jesus são fabricações tardias.

Lendering apresenta então sua análise em relação as tradições autênticas contidas nos evangelhos. Ele passa então a utilizar os critérios de historicidade. (É interessante, como já observamos em outro post, que Lendering utiliza metodologia similar para analisar as fontes sobre Apolonio de Tiana).

The following stories from the gospels, however, can stand the test of literary criticism, and prove that Jesus was seen as the Messiah.
Pontius Pilate condemned Jesus to the cross as king of the Jews (multiple attestation; embarrassment). The word 'king', which may be a translation of the messianic title Nasi, can be used as a synonym for 'Messiah', as we can observe in the quote from Matthew above.
Too many messianic titles are applied to Jesus to be incidental. In several contexts, he is called son of David, son of man, and king. Jesus was -in a way- anointed at Bethany (multiple attestation: Mark 14.3-9 and John 12.1-9). Elements of Jesus behavior are in line with what was expected from the Messiah: he explained the Law of Moses (multiple attestation) and was able to cast out demons (multiple attestation, in one case embarrassment). Jesus wanted to restore Israel - the Messiah's core activity.
He did not want his disciples to go to the pagans, but urged them to look 'for the lost sheep of the house of Israel' (Matthew 10.5 and 18.11-14). This is in marked contrast with the first Christians' missionary activity among the pagans and cannot be invented.
Jesus regarded his own ministry as the inauguration of the 'kingdom of God' (several stories, all attested in several sources; to a certain extent, these stories are embarrassing, because God did not intervene in human history).
Jesus wanted to purify the Temple (multiple attestation; embarrassment), which the Messiah was expected to do. The two most important stories are Jesus' triumphal entry in Jerusalem (Mark 11.4-11; John 12.12-16) and his attempt to cleanse the sanctuary (Mark 11.15-18 and John 2.13-22). The fact that John places this story as far away from the crucifixion as possible, indicates embarrassment.

(tradução) As seguintes histórias dos evangelhos, entretanto, resistem aos teste da crítica textual, e demonstram que Jesus era visto como o Messias.
Pôncio Pilatos condenou Jesus à cruz como rei dos judeus (múltipla atestação; constrangimento). Rei é uma tradução possível do título messiânico Nasi, que por sua vez pode ser usado como sinônimo de "Messias", como podemos observar na citação de Mateus acima.

Muitos títulos messiânicos são aplicadas a Jesus para serem mera coincidência. Em vários contextos, ele é chamado de filho de David, filho do homem, e rei. Jesus foi ungido em um caminho de Betânia (múltiplo atestado: Mark 14,3-9 e 12,1-9 John). Elementos do comportamento de Jesus estão em linha com o que se esperava o Messias: ele explicou a Lei de Moisés (atestação múltipla) e foi capaz de expulsar os demônios (atestação múltipla, e, em um dos casos, constrangimento). Jesus queria restaurar Israel - a atividade principal do Messias.
Ele não queria que seus discípulos para ir para os pagãos, mas exortou-os a olhar "para as ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mateus 10,5 e 18,11-14). Isto está em contraste marcado com a atividade os primeiros cristãos "missionário entre os pagãos e não pode ser inventado.
Jesus considerava o seu próprio ministério como a inauguração do "reino de Deus" (várias histórias, todas atestadas em várias fontes; até certo ponto, essas histórias são constrangedoras, pois Deus não interveio na história humana).
Jesus queria purificar o Templo (múltipla atestação; constrangimento), que o Messias era esperado para fazer. As duas histórias mais importantes são a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Mc 11,4-11; João 12,12-16) e sua tentativa de purificar o santuário (Marcos 11,15-18 e João 2,13-22). O fato de que João coloca essa história o mais longe possível a crucificação, indica constrangimento.



Como o leitor pode observar, Lendering opta, em geral, pelos elementos autenticados por ambos os critérios. De fato, comparando os elementos da tradição autenticados pelo critério do constrangimento, com os múltiplamente atestados, temos que Jesus estava associado a João Batista no início de seu ministério, que após a morte desse, passou a pregar a vinda iminente do Reino de Deus, que realizou exorcismo e recebeu títulos associados ao Messias, que em uma visita a Jerusalém, se opôs a (condução dos negócios no) Templo e as suas autoridades, e em seguida, foi preso e crucificado por Poncio Pilatos, que considerou a associação ao Messias como alta traição, ou tentativa de ser proclamado Rei dos Judeus. É um esboço de biografia, da associação de vários elementos plausíveis e, que, em conjunto formam uma narrativa coerente e verossimilar.



Um exemplo de como os criterios podem interagir de forma produtiva em vários casos. Por exemplo, em Marcos temos:



"Nós o ouvimos dizer: Eu destruirei este santuário, construído por mãos de homens, e em três dias edificarei outro, não feito por mãos de homens (Mc 14:58)



Esse dito é lembrado pelos acusadores de Jesus em seu julgamento, que teriam deposto falsamente, Mateus 26:61 relata dito semelhante, com duas testemunhas concordando. Lucas, que também depende da narrativa da paixão de Marcos, não menciona essa acusação, mas ela reapareçe em Atos, contra Estevão, "Jesus, o nazareno, há de destruir este lugar [o Templo] e mudar os costumes que Moisés nos transmitiu" (Atos 6:14). Os evangelistas parecem incomodados com o dito, embora registrem uma profecia de Jesus de destruição do Templo



E, saindo ele do templo, disse-lhe um dos seus discípulos: Mestre, olha que pedras, e que edifícios! E, respondendo Jesus, disse-lhe: Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada. (Marcos 13:1-2).



Marcos (e Mateus) relatam a predição de Jesus como profecia (algo que Jeremias também fez, cf Jr 7), e não como uma ameaça. Uma acusação de que Jesus teria ameaçado destruir o Templo, o faria parecer como um revolucionário perigoso, aos olhos de judeus e romanos. O Templo de Jerusalém era um dos maiores santuários do Império.



Nesse ponto da narrativa, pela teoria das duas fontes, Mateus e Lucas são dependentes de Marcos. No entanto, em outra corrente de tradição, o Evangelho de João, temos Jesus dizendo:



"Jesus respondeu, e disse-lhes: Derribai este templo, e em três dias o levantarei" (João 2:19)



João observa prontamente que o "Templo" a qual Jesus se refere é seu próprio corpo (v. 21), e que seus discípulos entenderam isso após a ressureição (v. 22). Mas os oponentes de Jesus não tiveram esse esclarecimento, e um dito como esse poderia ser facilmente utilizado contra Jesus. No entanto, o evangelho de Tomé também registra uma versão desse dito "Eu destruirei esta casa, e ninguém poderá reconstrui-la" (dito 71).



Ou seja, o dito é multiplamente atestado (Marcos e João, e possivelmente Tomé), os evangelistas demonstram certo constrangimento com o dito, Marcos afirma que os adversários inventaram/distorceram o que Jesus havia dito, João espiritualiza o seu significado, e Lucas simplesmente omite essa acusação do julgamento de Jesus.



Professor David Flusser, da Universidade Hebraica, observa que os 3 dias poderiam não estar na forma original do dito, mas sim relacionados a ressureição de Jesus [12]. Em todo caso, Flusser chama atenção para uma profecia que era interpretada como relacionada a vinda do Messias:



"Assim diz o SENHOR dos Exércitos: Eis aqui o homem cujo nome é RENOVO; ele brotará do seu lugar, e edificará o templo do SENHOR." (Zc 6:12).



Também os manuscritos do Mar Morto, no rolo do Templo, descrevem uma esperança de reconstrução do Templo na era messiânica, que não seria feito por mãos humanas, mas pelo próprio Deus:



"E Eu consagrarei meu [T]emplo por minha glória, (o Templo) o qual estabelecerei minha glória, até o dia de (uma nova) criação, quando criarei Meu Templo e o estabelecerei para Mim, para todo o sempre, de acordo com o pacto que fiz com Jacó em Betel (Rolo do Templo 29:9-10)"



Em suma, em alguns círculos, se esperava que a vinda do Messias implica-se na substituição do Templo feito pelas mãos humanas, por outro construido e consagrado pelo próprio Deus. No contexto judaico, um afirmação desse porte implicava no reconhecimento da chegada iminente do Reino de Deus e de seu ungido, justificando a reação de parte da aristocracia judaica, uma vez que especulações como essa facilmente poderiam se converter em rebelião contra a ordem estabelecida e o domínio romano. Caífas teria todos os motivos para ficar alarmado, e não admira a pergunta seguinte "És tu o Cristo?". E, se uma das concepções, e provavelmente, a mais popular, era que o Cristo restabeleceria o Reino de Davi, a acusação de "majestas" fica ainda mais pálpavel, explicando porque alguns dos principais sacerdotes (cujo o poder dependia de sua associação com Roma) tenham decidido se livrar de Jesus. (Devemos observar que o dito faz total sentido no contexto palestino antes da queda do Templo, mas totalmente deslocado entre cristãos depois de 70 DC; para compreende-lo eles espiritualizam seu sentido, como João faz).



"As palavras e as ações de Jesus em Jerusalém precipitaram a catástrofe. O sacerdócio saduceu, desprezado por todos, encontrou seu único apoio no Templo. Este profeta da Galiléia, diante da multidão reunida para a festa, havia não só previsto a destruição do santuário, mas o término da casta sacerdotal. Ademais, explorando os sentimentos amargos sobre o comércio que ali tinha lugar, desferiu um golpe doloroso contra as autoridades. As mesmas, trinta anos mais tarde, entregarão aos romanos Josué, filho de Ananias, por também profetizar a ruína do Templo. Os romanos protegiam com diligência todos os santuários religiosos do Império. Assumiam igualmente a tarefa de proteger o sumo sacerdote de agitadores inoportunos." [12]

André Chevitarese



André Leonardo Chevitarese é Professor de História Antiga, do Departamento de História, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É um principais expontes da pesquisa do cristianismo primitvo no Brasil, coordenando o Grupo de Pesquisas do Jesus Histórico e sua Recepção, a Revista Jesus Histórico, e editando várias publicações importantes na área, como "Judaísmo, cristianismo e helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo", "Jesus de Nazaré, uma Outra História" e "Cristianismos: Questões e Debates Metodológicos", que reunem contribuições de vários pesquisadores nacionais sobre o cristianismo primitivo, judaísmo do segundo templo e história romana.

Em seu artigo "Da traição é morte de Jesus de Nazaré: Em torno de Judas Iscariotes", publicado no livro "Jesus de Nazaré, uma Outra História", Chevitarese analisa as narrativas cristãs da traição de Judas Iscariotes, utilizando os critérios do constrangimento e múltipla atestação, com vistas a identificar um eventual núcleo histórico:

"O objetivo deste capítulo é discutir uma importante questão em torno da crucificação e da morte de Jesus de Nazaré; a traição de Judas pode ser assumida como fato histórico? [13]

Chevitarese considera então as fontes, que se resumem unicamente as narrativas cristãs. Pode o historiador utiliza-las? E se a resposta for positiva, como?

"Dependemos exclusivamente do material cristão para responder a esta questão (...) Na sua monumental obra, que ainda esta em curso, sobre o Jesus histórico, John Meier (2003:155) elencou uma série de procedimentos metodológicos, entre os quais nos interessam aqui dois deles, os critérios do constrangimento e da múltipla confirmação

Podemos analisar, partindo desses dois critérios metodológicos, o material que foi apresentado na primeira parte desse capítulo, o qual pode ser sistematizado em três pontos: [14]

Os três pontos listados por Chevitarese são: "Jesus escolheu pessoalmente o grupo dos doze apóstolos", "o agente ativo, responsável pelo ato de traição de Jesus", "A morte de Judas".[14]
Chevitarese destaca os motivos pelo qual Judas foi incluido na tradição.
"Admitindo que a traição de Judas - por estar diretamente conectada com os desdobramentos que levaram a crucificação e a morte de Jesus - fosse um fato amplamente conhecido entre cristãos e não aderentes do cristianismo (como por exemplo: seguidores de João, cognominado de Batista, e demais judeus) era de se esperar que ele fosse utilizado pelo último grupo como uma importante "arma" discursiva nos ataques contra os primeiros [14]

Como já destacamos acima, o pesquisador, ao se deparar com um elemento supostamente constrangedor, deve sempre considerar que ele foi incluido por um motivo. Uma possibilidade é o que consideramos embaraçoso hoje não o fosse para os cristãos primitivos, ou para o grupo específico para qual o texto foi direcionado. A outra, é que determinados eventos da Vida de Jesus, como o batismo por João Batista, a crucificação sob acusação de alta traição, as predições sobre a vinda da Reino de Deus que, aparentemente, não haviam se concretizado, fossem de conhecimento de grupos rivais, potenciais conversos e, claro, dos já convertidos, e estivessem sendo usados como arma de debate, e de invalidação das reinvindicações cristãs. Logo, esses detalhes precisam, de alguma forma, ser explicados, uma vez que são de conhecimento público, não podendo ser ignorados.

Corroborando com este argumento, convém observar que Celso (Orígenes, Contra Celso 2:11) no século II, lançar mão deste fato para criticar a origem divina de Jesus. Para um aprofundamento desses usos pelos grupos rivais religiosos, ver Chevitarese, 2004 [15]

Ou seja, o ponto do professor Chevitarese é que, sob um certo aspecto, os evangelhos são uma obra de "propaganda". Eles reinvidicam não só a apresentação de um testemunho verdadeiro, mas são declaradamente compostos com o objetivo de demonstrar que Jesus é o Messias, e o Filho de Deus. Nesse intuito, primeiramente eles apresentam elementos positivos, ensinos e feitos de Jesus que são comparados ou moldados de forma a serem demonstrados como prova de que as Escrituras se cumpriram. No entanto, os cristãos desde cedo enfrentaram "contra-propaganda" negativa, e seus escritores se preparam para responder isso. Então, adversários do cristianismo poderiam certamente dizer, "Como pode Jesus, sendo o Messias, e o Filho de Deus, escolher para seu circulo mais íntimo, entre aqueles que conviviam mais próximo, o seu próprio traidor?". Uma analogia seria com seguidores de um lider político com problemas com um antigo auxiliar, que tem rebater a utilização disso por seus adversários.

"O fato do tema fazer parte das narrativas evangélicas pode ser explicado, menos por uma tradição histórica que valesse a pena ser recuperada pelas comunidades cristãs, e mais por uma necessidade de contra-argumentar os dircusrsos produzidos pelos não-aderentes ao cristianismo, principalmente, mas não exclusivamente, de alguns setores do judaísmo (...). [16]
"Ao reconhecer como histórico o tema da traição de Judas, não estamos considerando aqui todos os detalhes contidos nesta narrativa, estamos também admitindo como histórica a tradição relacionada aos doze apóstolos. Muito mais do que ser pensada como uma 'invenção" posterior das comunidades cristãs, a sua existência tem bases para ser associada a Jesus. Os dois critérios metodológicos apontados acima - do constrangimento e múltipla confirmãção - se constituem em elementos chaves para tal admissão. É justamente ai que reside o foco central da críticafeita pelos grupos não aderentes ao cristianismo: Como pode ser admitido que Jesus de Nazaré seja o Cristo, se não foi capaz de saber que um dos seus apóstolos o trairia? Mas, se ele convenceu tantos judeus no seu próprio tempo histórico, acerca de seu caminho, como não foi capaz de convencer aquele que estava todos os dias com ele?


Em suma, há fortes elementos no material cristão para sugerir como real e histórica a narrativa de traição de Jesus por Judas.[16]

Referências Bibliográficas
[1] Martin Goodman e Jane Sherwood (2002), The Roman world, 44 BC-AD 180, fls. 317-318
[2] Murray G Murphy (2009), Truth and History, fl. 87-88
[3] Martin Goodman (2007), Rome and Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations, fl. 6
[4] Martin Goodman e Jane Sherwood (2002), The Roman world, 44 BC-AD 180, fls. 318
[5] John P Meier (1991) Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico, Vol. 1, fl. 1
[6] John P Meier (1991) Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico, Vol. 1, fl. 170-171
[7] Michael Grant (1979), An Historian's Review of the Gospels, fl. 49
[8] Alan F. Seagal (2005), Jesus and the Gospels-What Really Happened - [1]: Believe only the Embarrassing, Slate, 21.12.2005 http://www.slate.com/id/2132974/entry/2132989/, acessado em 06.01.2012
[9] John P Meier (1991), Um Judeu Marginal .... Volume 1 , fl. 177
[10] John P Meier (1991), Um Judeu Marginal ...., Volume 1 , fl. 191, nota 31
[11] Jona Lendering, Messianic claimants (6) Jesus of Nazareth (30 CE), em http://www.livius.org/men-mh/messiah/messianic_claimants05.html, acessado em 09.01.2012 [12] David Flusser (1997), Jesus, fl. 111-112
[13] Ancré L Chevitarese (2006) "Da traição é morte de Jesus de Nazaré: Em torno de Judas Iscariotes" In Andre L Chevitarese, Gabrieli Corneli e Monica Selvatici (2006), Jesus de Nazaré, Uma Outra História, fl. 121
[14] Chevitarese, Corneli e Selvatici (2006), fl. 125-127
[15] Chevitarese, Corneli e Selvatici (2006) fl 127, nota 9
[16] Chevitarese, Corneli e Selvatici (2006) fl. 129

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